29 outubro 2006

20 de Junho de 2001 – A Gênova Universal

A Carlo Giuliani (in memorian)
e todos os anarquistas mortos em combate

Amanheceu o dia.
Milhares de pequenos jovens guerreiros acordaram
de seus doces sonhos
de seus terríveis pesadelos.

Uma noite dormida ao som das gotas da chuva que previa uma tragédia.
Chorava ela sem que percebêssemos
o que lhe despertara tanta dor e sofrimento.


A aurora nos saúda.
Nem parecia que a noite fora tão fria,
Mas as lâminas douradas ainda não aqueciam aqueles corpos.

Meninos e meninas se preparam para uma batalha de paz.


Escudos de plástico,
Armaduras de espuma,
Máscaras
Panos cobrindo os rostos
Como elmos abençoados
E impenetráveis.

Éramos mais ingênuas crianças
Vestindo-se para uma brincadeira
Do que os verdadeiros guerreiros que representávamos
Naquele momento.


Todos às ruas,
Homens e mulheres
Meninos e meninas.

Queríamos penetrar a zona vermelha
Com nossa alegria
Com nossa esperança
Com nosso desejo de mostrar ao mundo
Que somos todos únicos
E unos.


Um som invade o espaço.


Não são os nossos gritos
Instrumentos de comunicação
Tentando manter a organização de nosso corpo
- milhares de células individualizadas
que não precisavam de muito para se compreenderem:
todas tinham o mesmo objetivo.

Não são nossos passos
Ora lentos
Ora agitados
A avançarem a cidade
Tomando praças.

Nem nossos cantos amigos
Que pediam paz
Igualdade
Solidariedade
Compreensão.

Cassetetes batendo em escudos
Uma música terrivelmente ritmada
Como o ribombar das trombetas anunciando a morte.

Cada batida
Dois passos

Cada batida
Dois passos.

Helicópteros.
Bombas zunindo em nossos ouvidos
Uma confusão de informações
Ir
Ficar
Recuar

Nossa vista embaciada
Fumaça.


Tentamos manter a unidade
Mas o ataque é maciço:
Frente
Retaguarda
Laterais:
Todos e todas encurralados e encurraladas
Não havia fuga:
Sofrer
Ou
Sofrer.


Animais no abatedouro.
Indefesos.


Nossas armas?
Nossos escudos:
Roupas
Peles
O amor, a solidariedade e a vontade que nos movem.

A deles?
Gazes,
Cassetetes
Armas de fogo...


Não.
As pessoas não compreendem.
Elas não querem compreender.

Não sabem.

Não querem se enxergar em nosso rosto cheio de vida!


Pedras lutam contra tudo e todos
Parece a Idade da Pedra.


Ansiedade
Desespero
Medo.


Nenhuma violência era aguardada por aqueles que só queriam algo simbólico.
Um senhor coberto por uma bandeira branca.
Uma garota com flores
Um garoto com balões coloridos
Como aqueles que empunhávamos nos parques
Durante nossa infância,
Nem que não fossem nossos...
Tentando semear a felicidade do aqui-agora.


Não.

Não era isso que eles queriam
Precisavam expiar seus males
Seus temores
Mostrar sua incapacidade de compreender o que é viver
Querer viver
Viver.


Um estrondo.
Um tiro.

Não!


Um garoto.
Sua face escondida por uma touca.


Uma bala atravessa nosso rosto.

Um tapa na cara.
Um buraco em nossa alma.

Entretanto, o coração ainda pulsa.

Pensam que estamos mortos.
Torturam-nos
Xingam-nos.
Dizem asneiras alienadas sobre nossos corpos.

Tudo ouvimos
Tudo sentimos
Tudo choramos.

Mal sabem eles.

Uma morte concreta
Diversas perdidas pelo mundo.

Junto daquele italiano
Sem rosto
Mascarado
Vestes simples
Morreu um pedaço meu
E seu.

No entanto,
Estão todos eles pela completude.
Cada qual em seu espaço
Unindo-se a um todo
Inconscientemente organizado.

Keila Sgobi

27/10/2002



7 comentários:

  1. Keila, não sei o que dizer, mas o seu texto é comovente. Tenho certeza que não compreendi nem a metade do que você quis transmitir, mas a narração do episódio foi lapidar, generosa nas imagens.
    Uma coisa é certa: preciso ler este poema mais algumas vezes, porque sei que há nele muito do que de mais verdadeiro seu peito encerra, ou me engano?
    Té mais ler!

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  2. (Escrito longo, esse, dona Keila...)

    Isso me trouxe tanta coisa à mente... Tanta coisa... Isso, junto com a conversa que tive, ontem, com um amigo meu...

    Ahr! Eu tô confuso! =S

    Preciso digerir estas idéias...
    Vou sair pra almoçar...

    =*

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  3. Anônimo22:29

    Nossa!
    Naõ esperava por algo tão denso, tão dolorido e tão belo!
    Concordo com meus amigos... voltarei pra ler mais e mais vezes!
    Minha admiração cresce cada vez mais, moça!

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  4. MEUDEUSDOCÉU, Keila!!!! Arrepiada até a última célula. E que mais alguns ergam as vozes e as palavras, brandindo os sonhos: existem ideais que violência não mata.
    **Estrelas trêmulas**

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  5. Oi

    Belas palavras, vi tudo pelo texto, e com comovente intensidade!!!

    Um dia queria entender melhor essa sua relação com a anarquia, fico muito curioso, pois pouco conheço sobre...

    bjs jardineiros

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  6. oi!
    anarquista?
    bom...bom demais saber!

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  7. É muito fácil se perder num texto longo como esse, mas você, querida Keila, mateve a unidade, o clima tenso e a qualidade da lírica na ponta afiada da tinteiro até o fim. Parabéns!!


    Beijos de congratulação!!!

    REMO.

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